Artigo do presidente do Sindifisco Nacional, Kleber Cabral, publicado pelo jornal Folha de São Paulo nesta quinta (30)
Receita Federal precisa ser imune à influência política
Por Kleber Cabral (*)
A terra sacudiu, em Brasília. Apesar do epicentro ter sido no Ministério da Justiça, o tremor foi sentido na sede e em todas as unidades regionais da administração tributária do país. A reverberação captada não foi a queda em si de Sérgio Moro, mas sim a preocupante denúncia de interferência política na Polícia Federal, por parte do próprio presidente Jair Bolsonaro, ameaça pela qual a Receita Federal passou em 2019.
Não é demais lembrar que o órgão, um dos mais republicanos e rígidos da estrutura de Estado, esteve num passado recente na mira de tentativas de intervenção provenientes de vários cantos do Poder, desde o Judiciário a autoridades do Executivo, sem se esquecer do Parlamento, que abriga um número elevado de desafetos da Receita Federal.
Para citar alguns casos, o círculo palaciano tentou substituir auditores fiscais em posições estratégicas de comando, como o superintendente regional do órgão no Rio de Janeiro e o delegado da alfândega do Porto de Itaguaí. A troca não ocorreu, porque os auditores fiscais reagiram e ameaçaram com uma demissão coletiva, de cerca de 200 cargos de chefia.
Indicações políticas não apenas são tóxicas, por gerar apreensão na atividade dos auditores fiscais e incertezas no órgão. Elas são indesejáveis e inaceitáveis por corromper e desvirtuar a missão da impessoalidade no trato da coisa pública. A atuação da Receita Federal — instituição permanente de Estado, que tem por finalidade a administração tributária e aduaneira da União — é essencial para o funcionamento do Estado (artigo 37, XXII da CF 88), cujo sucesso depende de sua atuação republicana, orientada por critérios legais rigorosos.
Intromissões podem não apenas comprometer a eficiência do órgão em arrecadar e financiar a máquina estatal, como o seu trabalho de combate à sonegação e à corrupção, dentre outros crimes. Miríades de dados de transações, registros e operações de fraudes tributárias, que transitam todos os dias pelos sistemas informatizados da Receita Federal, escondem ilícitos de ordem criminal. Quando esses indícios são identificados, cabe ao auditor fiscal comunicá-los ao Ministério Público, por meio da chamada Representação Fiscal para Fins Penais.
Se qualquer pessoa, inclusive o presidente da República, tentar obstruir investigações no âmbito penal, cometerá crime específico previsto na Lei das Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013, artigo 2º, § 1º), o que garante, em tese, alguma proteção aos delegados da Polícia Federal, responsáveis pelos inquéritos. Infelizmente, não existe essa salvaguarda para os auditores fiscais, ainda que diversas operações policiais tenham início em trabalhos da Receita Federal.
É urgente que um órgão da administração pública brasileira, com a robustez de informações estratégicas, como a Receita Federal, assim como os auditores fiscais, responsáveis pelo enfrentamento de interesses políticos e econômicos poderosos, estejam devidamente amparados para o exercício de suas funções.
Nesse debate de blindar os órgãos de Estado de interferências políticas, é indispensável que os chefes máximos de cada órgão sejam servidores de carreira, a fim de evitar que os postos sejam preenchidos politicamente e ocupados por pessoas estranhas à respectiva carreira típica de Estado. No caso da Polícia Federal, há expressa previsão legal que torna privativo de delegados da classe especial o cargo de diretor-geral da Polícia Federal (Lei 13.047/14).
Tramita no Congresso Nacional desde 2007 a PEC 186, que visa justamente proteger as administrações tributárias da União, estados e municípios de interferências internas e externas, garantindo segurança jurídica ao exercício da atividade de fiscalização. Em paralelo, é fundamental que haja ao menos a previsão legal de que o Secretário da Receita Federal seja um auditor fiscal de classe especial, e com mandato, reduzindo assim as chances de interferências políticas nocivas aos interesses da sociedade.
À luz das ameaças que se avizinham, é urgente que o conjunto das instituições democráticas vocalizem junto ao Congresso a necessidade de mecanismos de blindagem jurídico-normativo da Receita Federal que, pela natureza de sua atividade, é recorrentemente alvo de pressões por parte de forças exógenas, sejam políticas ou do mercado, que não coadunam com os objetivos de uma fiscalização tributária republicana, pautada pelo interesse público e defesa da coletividade de contribuintes que pagam regularmente seus impostos.
(*) Kleber Cabral é Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil e presidente do Sindifisco Nacional
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